"De tudo se faz canção" (Lô Borges, Márcio Borges e Milton Nascimento)

          Certa vez um tema descritivo gerou uma certa polêmica entre os alunos. Alguns diziam que era impossível se fazer uma descrição com ele. "Não há muito o que se falar sobre isso, professor!", reclamavam. Seguindo o que diz o verso do Clube da Esquina (De tudo se faz canção), eu respondi que tudo o que há no mundo é passível de ser descrito, até mesmo uma gota d'água. Pronto! Imediatamente fui desafiado a demonstrar o que havia acabado de dizer. E eles estavam certos: quem faz uma afirmação dessas tem o ônus de provar que ela é verdadeira.
         Pois bem, seguindo os parâmetros recomendados pelo esquema básico que utilizamos em nosso curso de redação, compus este texto:


A minúscula joia
Marcelo Ferreira de Menezes


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Um bando de maritacas avança barulhento sobre o azul esmaecido do céu entrecortado pelas sibilantes folhas das palmeiras que se contorcem com o roçar matreiro do vento. Perdendo-se no horizonte, as verdes aves parecem levar consigo a morna sensação de um dia que, cansado, se despede, deixando uma lacuna no meio da tarde para a entrada solene da noite, que não tarda a vir. O último canto das lavadeiras, apesar de há muito ter soado, ainda ecoa pelo silêncio do pátio de terra batida da vetusta lavanderia da senzala. Na parede de um dos tanques, pronunciando-se como uma lagarta rígida de cobre, uma torneira exibe uma espécie de jóia cujo valor é por todos ignorado. Mínima, transparente, luzidia e efêmera, uma gota de água se debruça na boca dessa torneira.
O relógio parece diminuir a velocidade de seus passos só para prolongar o tempo de vida de tão delicado cristal. Como uma lágrima que se recusa a percorrer os caminhos de uma face suavizada pela dor, a gota se mantém fixa, aparentemente satisfeita com sua concavidade de vidro polido. Meus olhos tateiam sua superfície convidativamente lisa à procura do reflexo da luz. Descubro, com surpresa, que sua pseudotransparência abriga — e somente olhos atrevidos podem descobri-la ali — toda a paisagem circundante, como um espelho macio de proporções diminutas. Estremeço ao imaginar que algo tão pequeno possa, unida a bilhões e bilhões de outras com a mesma proporção, se transformar em rios, cachoeiras e tempestades. Descubro-a com mais vida, na medida em que parece respirar, uma respiração que a vai dilatando aos poucos e vai, quase que imperceptivelmente, transformando-a numa espécie de órgão brilhante e trêmulo. Deve ser essa a aparência do espectro de um coração.
O tempo nos engana; ele se permitiu correr até mesmo para ela, que agora vai retomando seu destino natural num deslizar sereno e contínuo para fora da torneira, alongando suas formas cada vez mais, demonstrando suas qualidades de minério dúctil. Agora já é quase uma esfera, uma bola de cristal na qual descubro ainda, no exato instante em que se aparta de vez do cárcere no qual era refém, não os lances alvissareiros ou sombrios do meu futuro; não, que este só a Deus pertence. Mas, adornada pelo resto de brilho do sol que se instalou em sua superfície como um pequeno pedaço de ouro delicadamente posto sobre o diamante, descubro, eu dizia, minha própria face, toda banhada de assombro e mística felicidade.
Despenca pelos ares como estrela cadente o miúdo corpo de vidro úmido e gelatinoso, percorrendo veloz o espaço compreendido entre a boca negra da torneira e o túnel medonho e misterioso do ralo sobre o chão do tanque. Mais uma vez, ouve-se o cantar aborrecido das maritacas, enquanto a minúscula jóia desaparece depressa na garganta do dia, indo-se juntar a seus longínquos pares, para fundar os rios e, finalmente, desaparecer nos mares.

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E foi isso.
Um abraço.