O contado e o narrado (Em 23/10/12)

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O contado e o narrado

Vamos falar agora um pouco sobre a arte de narrar. E para isso é bom fazermos uma distinção entre contar e narrar. Bem, se formos considerar os sentidos que os dicionários dão às palavras contar e narrar, não encontraremos diferenças significativas. São, na verdade, sinônimos. Mas vamos pedir uma licença somente para efeitos didáticos, estabelecendo entre essas duas palavras uma oposição de técnicas, pelo menos no que se refere à escrita. Então, vamos admitir por enquanto que o ato de se contar, apesar de se valer de algumas técnicas obviamente apropriadas, não se vale de outras mais sofisticadas, que, quando presentes, conferem ao texto o caráter de um texto literário.
Cotidianamente, quando contamos oralmente um fato ou uma história qualquer, quase sempre o fazemos em momentos nos quais talvez nem o tempo, nem o contexto nos permitam uma expansão mais abrangente de ideias, um tratamento linguístico mais apurado, o respeito a determinados recursos técnicos para a criação de suspense, por exemplo, que o texto permite. Afinal de contas, nesses casos, estamos geralmente em uma conversa, e nosso interlocutor também alterna conosco turnos de fala; ele faz interrupções, perguntas, acréscimos, etc. Por isso, essa linguagem é marcada pela brevidade e pela economia, já que ninguém tem o dia inteiro para ouvir nossa história, não é mesmo? Nesse caso, vamos dizer que, até mesmo em função da inexistência de instâncias narrativas, como o clímax, esses fatos são mais contados do que narrados.
Já no texto escrito, não podemos reproduzir a mesma técnica, pois o contexto, por ser outro, permite sim uma maior expansão da exposição de ideias, um tratamento mais apurado com relação à linguagem, além de pressupor a aplicação de técnicas precisas que gerarão o suspense, cujo objetivo é conduzir o leitor ao clímax. Mas como fazer isso?
O exemplo seguinte é um bom exemplo de contado e, a partir dele, construiremos o narrado. Veja:

A minha filha, Andreia, estudou muito para passar no concurso público para a Marinha. Quando ela passou, eu, que já sentia muito orgulho dela, fiquei mais orgulhosa ainda. Aí, então, eu fiquei com um pouco de medo, sei lá. Eu achei que ela ia sair de casa logo em seguida a ter passado no concurso... E eu ia... Eu ia ficar sozinha, sabe? Eu tinha certeza de que iria ficar sozinha. Daí eu pirei. Eu não queria que ela fosse e tentei de tudo para a impedir.

Agora vamos aplicar um pouco de literariedade a esse trecho.

Foram cinco anos de muito empenho, muitas noites em claro, livros e unhas roídas. Eu, em meu coração apertado, passava pelas mesmas angústias que ela vivia antes de cada prova, como se fosse eu mesma a candidata. E sofria o mesmo peso da decepção a cada concurso fracassado. Entrar para a Marinha parecia ser um sonho arredio para Andréia, minha única filha. Então, quando ela adentrou nossa casa, doida, gritando, com o jornal na mão, que seu nome estava na lista dos classificados, que ela havia passado, fiquei tão orgulhosa de seu feito que pensei que fosse morrer de tanta emoção. Mas, logo em seguida, meu peito se turvou numa tristeza indizível; aquele clarão de alegria dos primeiros dias se converteu numa sombra dura, aguda: eu tinha medo de que ela me deixasse ali, sozinha. Foi, a partir daí, que passei a maquinar um meio de a impedir.

Uma outra maneira interessante é trabalhar com diálogos entre as personagens. Por meio deles o narrador atualiza as cenas de sua história, lançando o leitor na cena da forma como ela teria ocorrido, além de transmitir informações importantes para a trama em um curto espaço de texto. Acompanhe:

Filha... Andreia, minha filha! Apague essa luz. Tente dormir um pouco, sim? Amanhã você continua a estudar. Assim, não se aprende nada, filha! − eu gritava de meu quarto, já deitada em minha cama há algumas horas.
Já vou mamãe. Só mais uma página e já vou dormir.
Andreia, minha única filha era assim: determinada. Queria, desde menina, entrar para a Marinha e já vinha fazendo concursos havia cinco anos. Todos sem sucesso algum. Então, um dia, pela manhã:
Mamãe! Mamãe! Eu não acredito! Olha! Olha aqui! Olha aqui o nome de sua filha! − ela sacudia as páginas do jornal. − Eu passei! Eu finalmente passei, mamãe!
Fiquei orgulhosa dela, e os primeiros dias foram de uma felicidade sufocante. Mas, logo em seguida, fui abalada pelo medo de que ela pudesse me deixar. Então, passei a maquinar um jeito de isso não acontecer.

E agora? Ficou clara a diferença entre contar e narrar? Tente fazer algo parecido. Explore sua capacidade de narrador trabalhando dessa e de outras formas o texto.