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O contado e o narrado
Vamos
falar agora um pouco sobre a arte de narrar. E para isso é bom
fazermos uma distinção entre contar e narrar. Bem, se formos
considerar os sentidos que os dicionários dão às palavras contar
e narrar, não
encontraremos diferenças significativas. São, na verdade,
sinônimos. Mas vamos pedir uma licença somente para efeitos
didáticos, estabelecendo entre essas duas palavras uma oposição de
técnicas, pelo menos no que se refere à escrita. Então, vamos
admitir por enquanto que o ato de se contar, apesar de se valer de algumas
técnicas obviamente apropriadas, não se vale de outras mais
sofisticadas, que, quando presentes, conferem ao texto o caráter de
um texto literário.
Cotidianamente, quando
contamos oralmente um fato ou uma história qualquer, quase sempre o
fazemos em momentos nos quais talvez nem o tempo, nem o contexto nos
permitam uma expansão mais abrangente de ideias, um tratamento
linguístico mais apurado, o respeito a determinados recursos
técnicos para a criação de suspense, por exemplo, que o texto
permite. Afinal de contas, nesses casos, estamos geralmente em uma
conversa, e nosso interlocutor também alterna conosco turnos de
fala; ele faz interrupções, perguntas, acréscimos, etc. Por isso,
essa linguagem é marcada pela brevidade e pela economia, já que
ninguém tem o dia inteiro para ouvir nossa história, não é mesmo?
Nesse caso, vamos dizer que, até mesmo em função da inexistência
de instâncias narrativas, como o clímax, esses fatos são mais
contados do que narrados.
Já no texto escrito, não
podemos reproduzir a mesma técnica, pois o contexto, por ser outro,
permite sim uma maior expansão da exposição de ideias, um
tratamento mais apurado com relação à linguagem, além de
pressupor a aplicação de técnicas precisas que gerarão o
suspense, cujo objetivo é conduzir o leitor ao clímax. Mas como
fazer isso?
O exemplo seguinte é um bom
exemplo de contado e, a partir dele, construiremos o narrado. Veja:
A
minha filha, Andreia, estudou muito para passar no concurso público
para a Marinha. Quando ela passou, eu, que já sentia muito orgulho
dela, fiquei mais orgulhosa ainda. Aí, então, eu fiquei com um
pouco de medo, sei lá. Eu achei que ela ia sair de casa logo em
seguida a ter passado no concurso... E eu ia... Eu ia ficar sozinha,
sabe? Eu tinha certeza de que iria ficar sozinha. Daí eu pirei. Eu
não queria que ela fosse e tentei de tudo para a impedir.
Agora vamos aplicar um pouco
de literariedade a esse trecho.
Foram cinco anos de muito
empenho, muitas noites em claro, livros e unhas roídas. Eu, em meu
coração apertado, passava pelas mesmas angústias que ela vivia
antes de cada prova, como se fosse eu mesma a candidata. E sofria o
mesmo peso da decepção a cada concurso fracassado. Entrar para a
Marinha parecia ser um sonho arredio para Andréia, minha única
filha. Então, quando ela adentrou nossa casa, doida, gritando, com o
jornal na mão, que seu nome estava na lista dos classificados, que
ela havia passado, fiquei tão orgulhosa de seu feito que pensei que
fosse morrer de tanta emoção. Mas, logo em seguida, meu peito se
turvou numa tristeza indizível; aquele clarão de alegria dos
primeiros dias se converteu numa sombra dura, aguda: eu tinha medo
de que ela me deixasse ali, sozinha. Foi, a partir daí, que passei a
maquinar um meio de a impedir.
Uma outra maneira interessante
é trabalhar com diálogos entre as personagens. Por meio deles o
narrador atualiza as cenas de sua história, lançando o leitor na
cena da forma como ela teria ocorrido, além de transmitir
informações importantes para a trama em um curto espaço de texto.
Acompanhe:
−
Filha...
Andreia, minha filha! Apague essa luz. Tente dormir um pouco, sim?
Amanhã você continua a estudar. Assim, não se aprende nada, filha!
− eu gritava de meu quarto, já deitada em minha cama há algumas
horas.
−
Já
vou mamãe. Só mais uma página e já vou dormir.
Andreia,
minha única filha era assim: determinada. Queria, desde menina,
entrar para a Marinha e já vinha fazendo concursos havia cinco anos.
Todos sem sucesso algum. Então, um dia, pela manhã:
−
Mamãe!
Mamãe! Eu não acredito! Olha! Olha aqui! Olha aqui o nome de sua
filha! − ela sacudia as páginas do jornal. − Eu passei! Eu
finalmente passei, mamãe!
Fiquei
orgulhosa dela, e os primeiros dias foram de uma felicidade
sufocante. Mas, logo em seguida, fui abalada pelo medo de que ela
pudesse me deixar. Então, passei a maquinar um jeito de isso não
acontecer.
E
agora? Ficou clara a diferença entre contar e narrar? Tente fazer
algo parecido. Explore sua capacidade de narrador trabalhando dessa e
de outras formas o texto.