Numa das aulas de descrição foi proposta a seguinte atividade de descrição de pessoa:
Em sala de aula, foi apresentada aos alunos uma foto de uma menina afegã, retirada da capa da revista Geográfica Nacional. Depois, foram lidas as seguintes informações constantes da reportagem da mesma revista:
“Ela se lembra de sua cólera diante daquele homem, um completo estranho. Ela jamais fora fotografada. E, quando voltaram a se ver, 17 anos depois, ela não havia sido fotografada mais nenhuma vez.
O fotógrafo também se lembra daquele instante. A luz descia suave sobre um mar de barracas de um campo de refugiados no Paquistão. Foi no interior da tenda onde funcionava a escola que ele a viu pela primeira vez. Ao perceber o quanto era tímida, esperou para se aproximar. Até que ela consentiu que fizesse a foto. 'Eu não tinha ideia de que a dela seria diferente de tantas outras fotografias que fiz naquele mesmo dia', comenta Steve McCurry ao lembrar-se da manhã de 1984 em que registrava o drama dos afegãos.(...)
A 'menina afegã' chama-se Sharbat Gula e é da tribo patane, uma das mais belicosas do Afeganistão.(...) Ela está com 28 anos, talvez 29 ou 30. Ninguém, nem mesmo ela, sabe com certeza. Nesse lugar sem registros, as histórias mudam como dunas de areia.
A passagem do tempo e a vida dura apagaram a juventude de Sharbat.(...) 'Ela comeu o pão que o diabo amassou', comenta McCurry. 'Como tantos outros por aqui'. Foram 23 anos de guerra, com 1,5 milhão de mortos e 3,5 milhões de refugiados.
O olhar da menina nos desafia e, acima de tudo, nos perturba. Não conseguimos nos desviar dele.(...)
A rotina de Sharbat não muda, dia após dia. Ela acorda antes do amanhecer e faz suas orações. Depois vai buscar água no regato, cozinha, limpa e lava roupas. Sua vida é cuidar das três filhas. Robina está com 13 anos, Zahida, com 3, e Alia, o bebê, tem 1 ano. Uma quarta filha morreu ainda pequena. Sharbat nunca teve um dia de felicidade, com exceção talvez daquele em que se casou.(...)
'Ontem e hoje, nosso contato foi através da lente. Desta vez ela achou mais fácil olhar para a lente do que para mim. É uma mulher casada, e não deve olhar para nenhum homem a não ser o seu marido.' ”
Dadas essas informações, foi proposto o seguinte tema de descrição:
A partir da fotografia e das informações fornecidas pela reportagem, faça um texto descritivo dessa mulher, imaginando-a 17 anos mais velha. Descreva-a do ponto de vista do fotógrafo, com o observador em 1ª pessoa.
Recolhidos os textos, os alunos puderam então ver a foto da mesma mulher mais velha. Dos 38 textos produzidos em sala de aula, “Olhos verdes”, da aluna Jeniffer Candido de Carvalho e "Olhos de esmeralda", do aluno João Batista dos Santos Silva Júnior, foram os escolhidos. Embora tenham sofrido algumas poucas alterações, eles merecem ser apreciados não só pela estrutura, que segue rigorosamente o esquema básico, mas também pela informatividade e, sobretudo, pela qualidade da linguagem.
Olhos verdes
Jeniffer Candido de Carvalho
Jeniffer Candido de Carvalho
O tempo no deserto é contado também pelo mover das dunas. Por isso, para um ocidental, como eu, é tão difícil perceber que ele, o deserto, jamais será o mesmo, apesar de parecer imutável nas duas vezes em que o pisamos. Assim como faz com as dunas, o tempo esculpe rostos e transforma olhares. Dezessete anos se passaram, depois que a lente de minha câmera registrou uma das mais impressionantes fotografias do século. Nesse momento volto a me deparar com aqueles olhos verdes que um dia se destacaram dentre tantos olhares tristes que pude captar antes e depois daquele flash.
Sharbat Gula, agora com seus trinta anos, não mais exibe sua pequena boca desenhada, que motivo algum tinha para sorrir; agora, em seu lugar, uma boca ainda mais triste foi mudando da forma original para uma parábola que decresceu com o passar dos anos. Sua testa é pequena e franzida; seus cabelos estão ressecados e cobertos por panos, surrados como suas roupas; sua pele, queimada pelo sol que castiga sua terra.
É uma mulher forte que, mesmo diante da guerra, sobreviveu e permaneceu. Esposa dedicada e mãe amorosa, faz todas as tarefas domésticas; guarda seu olhar esverdeado para seu marido, único homem para quem pode olhar, e cuida de suas filhas, gotas de alegria em meio a uma vida seca de tristezas. Mesmo sendo privada de muitos direitos, Sharbat aguenta sua vida dura com uma força que encobre sua delicadeza e fragilidade feminina, assim como as longas vestes que cobrem seu corpo e o sufocante véu que aprisiona, durante todo o dia, parte de sua face.
Deparo-me com uma mulher e não mais uma menina. Agora, seu rosto, mudado pelo tempo, em quase nada me lembra aquela mocinha acuada de anos atrás, a não ser pelos olhos. Lindos olhos verde-esmeralda mesclados com raios amarelos que saem de suas pupilas. Perturbadores, intimidadores como os olhos de uma pintura antiga os quais me seguem sem se mexer; os quais, intactos, sobreviveram a todas as dificuldades. Olhos brilhantes, cujos raios dourados abrem espaço no verde predominante e iluminam mais que o sol ardente de sua terra. Tristes, sim, como tantos outros, mas que jamais se curvam ao solo para esquadrinhar a misteriosa dimensão do nada sobre a areia.
Postado em 18 de março de 2011.
Olhos de esmeralda
João Batista dos Santos Silva Júnior
Após as areias do tempo se depositarem, ano após ano, no fundo da ampulheta, tive a oportunidade de fitar novamente seus raros olhos de esmeralda. Munido de meu inseparável instrumento de trabalho, minha câmera de fotografar, adentrei aquele ambiente de ar carregado, no qual tudo me sugeria morosidade e estagnação. Mais uma vez, deixei que meu espírito fosse tocado pelo fogo do mistério contido em um simples olhar.
Sharbat continuava sendo o retrato da sua região. Sua face, moldada rusticamente pelo cinzel do sofrimento de anos de guerra e rotina desgastante, sustentava a imagem da forte mulher afegã. Os lábios rachados pelo calor e escassez de água permaneciam cerrados, devido à proibição de falar com outros homens. A timidez apresentada dezessete anos atrás deu lugar à determinação, segurança e coragem conquistadas paralelamente ao amadurecimento precoce de suas feições. Suas mãos calejadas de dona de casa abrigavam unhas sujas, porém bem-cortadas, mostrando sua modesta vaidade.
Seus olhos, no entanto, pareciam ter parado no tempo. Conservavam o brilho e a vivacidade dos olhos de uma menina. Penetravam minha alma através da lente da câmera. Ao admirá-los, pude sentir a esperança que o verde único de sua pigmentação carregava e, ao mesmo tempo, uma impotência me invadia, em saber tudo o que eles haviam presenciado. Notava-se, no entanto, que seu temperamento, ao contrário de seu olhar, sofrera mudanças severas. Eu já não estava mais diante daquela pequena afegã assustada, quase encolhida diante de um estrangeiro; era uma mulher altiva e senhora de uma impetuosidade soberanamente muda quem desafiava a lente e as luzes intermitentes de minha câmera.
O reencontro com a dona do olhar mais marcante que já fotografei me mostrou como um momento pode representar mais que anos de história e falar mais que palavras ditas e escritas. Para mim os seus olhos não são verdes, e, sim, é o verde que parece com seus olhos.
Postado em 27/04/2001.