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Sonhar pode custar caro
Prof. Marcelo Ferreira de Menezes
Sonhar não custa nada, e o meu sonho é tão real... Assim começava um antigo samba enredo de 1992 de uma famosa escola de samba do Rio de Janeiro, a Mocidade Independente de Padre Miguel. Sonhar, no sentido de imaginar, projetar algo de bom para o futuro, idealizar uma situação qualquer, realmente não custa nada e pode ser um ótimo exercício para a mente e para o espírito. Já o sonho de todos os dias, aquele que surge quando estamos dormindo, esse é que não custa nada mesmo, nem esforço mental! Mas, quando estamos falando da escritura de textos narrativos e da construção de um clímax para eles, sonhos ou devaneios, como recurso de resolução da trama, hum..., podem não ser uma boa ideia.
Você já deve ter lido um conto ou um livro, deve ter visto um filme ou um desenho animado cujo clímax da trama se dá quando o protagonista, vendo-se em meio a conflitos que não se resolvem nunca ou em meio a uma situação insolúvel de grande perigo, acorda, revelando ao leitor ou espectador que tudo não passou de um terrível sonho. Já houve época em que esse recurso, tendo sido aplicado numa obra, chegou a fazer algum tipo de efeito surpresa. Mas esse tempo já vai longe.
Com o passar dos anos, ele foi utilizado de tantas e variadas maneiras, que se desgastou, e hoje talvez apenas funcione com as crianças e com os adolescentes, mesmo assim somente com aqueles que ainda não o conhecem. Por isso, chamamos esse recurso de clichê, ou seja, algo que, pelo uso em demasia, pelo emprego recorrente, já não produz o efeito o qual se propõe produzir. Os iniciantes nesse tipo de texto costumam dar finais assim a suas redações; mas é necessário que abandonem essa muleta à medida que vão recebendo mais e melhores informações sobre a narração.
O problema com a aplicação desse clichê surge quando alguém, tendo se utilizado dele em uma narração de concurso, por exemplo, crê que criou algo absolutamente original, criativo. Ledo engano. “Mas o cinema faz isso e as novelas de TV também!”, tenta argumentar o malfadado redator. E até certo ponto, ele não deixa de ter razão, mas...
Sempre insistimos aqui no blog sobre a importância de que o redator compreenda que, numa situação de avaliação, ele não estará escrevendo para uma criança ou para telespectadores, mas para um adulto hábil em leitura. Ou seja, sua produção estará inserida em um contexto todo próprio, diferente daquele de produção de uma telenovela, de um filme, de um livro ou de uma revista em quadrinhos, digamos. As novelas, só para ficar em um exemplo mais próximo de nós, brasileiros, literalmente cozinham o telespectador com tramas intrincadas, cuja solução é tão difícil, que seus autores apelam para finais inverossímeis; aquilo que o público em geral classifica como final mal contado. Mas aí já é tarde demais para reclamações, pois o último capítulo já foi ao ar, e a emissora já faturou o que tinha que faturar. Por isso os autores de telenovelas não sentem nenhum impedimento em fazerem o que fazem nos últimos capítulos: o compromisso deles é com o faturamento.
Resolver tramas narrativas acordando protagonistas de um sonho é uma solução simplista que pode revelar para o avaliador algo negativo sobre o redator. Na verdade o uso desse ardil expõe a total falta de criatividade do escritor e sua inabilidade de apresentar uma solução para os problemas que ele mesmo foi gerando ao longo de sua narrativa. Trocando em miúdos: isso é algo que compromete o estilo do texto. E você, que é aluno de nosso curso, sabe o quanto o comprometimento dessa dimensão pode custar caro em um treinamento ou prova. Dependendo do tema, ele pode significar até grau zero de estilo.
Podemos dizer que a artimanha do tudo não passou de um sonho é, conforme nos disse o escritor paraibano Bráulio Tavares, uma mutação, “um irmão de sangue” de um recurso surgido na Grécia antiga, mas utilizado até os dias de hoje, chamado deus ex machina (leia-se máquina). Conforme nos esclarece esse mesmo escritor:
Em algumas peças de teatro da Antiguidade, principalmente entre os gregos, acontecia às vezes de o texto se encaminhar para o final sem poder dar uma resolução satisfatória aos problemas dos protagonistas. Os deuses do Olimpo ficavam impacientes com os desmandos praticados pelos seres humanos, e se viam obrigados a interferir nas suas ações, para evitar que maiores injustiças fossem cometidas. Na última cena, então, descia do alto um deus ou semideus que interferia na história de diferentes maneiras: salvando a vida do protagonista, condenando os vilões, e assim por diante. Esses personagens eram descidos ao palco por um sistema de andaimes ou plataformas que pareciam descer do céu, sendo erguidas e baixadas através de roldanas, daí o termo original, que significa aproximadamente "deuses surgidos através de meios artificiais”.
Muitos foram os autores que se valeram e continuam se valendo desse tipo de armadilha para o leitor ou para o espectador. Recentemente, milhões de pessoas pelo mundo ficaram decepcionadas após assistirem ao final da série de TV americana Lost, da qual foram devotos ao longo de seis anos. A trama intrincada apresentou uma série de problemas tão difíceis de serem resolvidos, que seus autores apelaram para um final em que simplesmente confessam aos fãs que os personagens estão mortos desde o primeiro episódio, devido à queda do voo 815 da Oceanic Airlines, e “vivendo” numa espécie de limbo. Isso foi um verdadeiro banho de água fria em quem acompanhou todos os episódios na esperança de explicações plausíveis para tantas situações fantásticas e ilógicas que se foram acumulando.
A mesma sensação tem o leitor hábil quando percebe que perdeu seu tempo lendo uma trama que se resolve de maneira simplista e sem criatividade, em que faltou o alinhave com classe e inteligência dos problemas propostos no enredo. O leitor se sente traído; sente que caiu numa espécie de golpe, que recebeu um cheque sem fundos. Isso porque o redator pode colocar o que quiser no papel, as situações mais fantásticas, as aventuras mais emocionantes, os fatos mais absurdos, pois sabe muito bem, desde o início, que não terá trabalho para resolver tudo o que pôs no papel com sua caneta. É um gesto de deslealdade do escritor para com seu leitor.
Portanto, lembre-se: tente solucionar a trama com uma revelação, uma surpresa autêntica, utilizando-se de todos os elementos que forem sendo inseridos na narração. O ideal é saber aonde se quer chegar primeiro, conhecer de antemão qual será o clímax. Em seguida, vai-se construindo cada etapa, de maneira que essas etapas se harmonizem e contribuam para a lógica que levará a um final inteligente e, portanto, criativo.
Da próxima vez que estiver produzindo uma narração para ser avaliada em um processo de seleção, não durma no ponto, como se diz por aí. Nesse caso, sonhar, dependendo do tema dado, pode custar caro, e é você que pode acordar no meio de um pesadelo.
Sobre o assunto clichês, veja também
http://www.sobrecarga.com.br/node/view/972
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