Professor Pasquale Cipro Neto |
"A verdadeira libertação - é sempre bom repetir - não consiste em esconder, mas em apresentar. Não se pode, por decreto, eliminar um termo que tem largo emprego nos registros formais."
Ave migratória?
“Vejo na televisão e no rádio que o ‘cujo’ bateu asas e voou. Virou ave migratória.” Extraído de um dos últimos escritos de Otto Lara Resende na Folha de S. Paulo, o fragmento serviu de mote para uma questão de um dos vestibulares da Unicamp, que tinha este enunciado: “O comentário acima refere-se ao fato de que o uso do pronome relativo ‘cujo’ é cada vez menos frequente. Isso faz com que os falantes, ao tentarem utilizar esse pronome na escrita, construam sequências sintáticas que levam a interpretações estranhas”. Em seguida, a banca exemplificava a afirmação com este trecho do “Painel do Leitor”, da Folha de S. Paulo: “E que a esse PFL e a Brizola (cuja ficha de filiação ao PDT já rasguei) reste a vingança do povo”. Por fim, os examinadores pediam aos candidatos que indicassem “o que o leitor pretendeu dizer com a oração entre parênteses” e “o que ele disse literalmente”.
Talvez não seja preciso muito esforço para que se entenda o que disse literalmente o leitor. O todo-poderoso rasgou a ficha de filiação de Brizola ao PDT, o que se deduz da passagem “cuja ficha (...) rasguei”, em que o relativo “cuja”, cujo antecedente é “Brizola”, estabelece relação de posse entre “Brizola” e “ficha”. Em última análise, a ficha em questão é de Brizola. Também parece óbvio que a intenção dele era dizer que rasgou a própria ficha de filiação ao PDT.
É incontestável a afirmação de que, nas variedades não formais da língua, o uso do relativo “cujo” é cada vez menos frequente. Também é incontestável a afirmação de que frases em que se verifica seu emprego são incompreensíveis para boa parte da população brasileira. Contestabilíssima é a teoria de que, por essas razões, o pronome “cujo” deve ser abolido do ensino do idioma. A verdadeira libertação ― é sempre bom repetir ― não consiste em esconder, mas em apresentar. Não se pode, por decreto, eliminar um termo que tem largo emprego nos registros formais.
Em seu ótimo “Fundamentos de Gramática do Português”, o ilustre professor José Carlos de Azeredo assinala que as formas “cujo”, “cuja”, “cujos” e “cujas” são exclusivas das variedades formais da língua. De fato, na linguagem coloquial e na popular, o pronome “cujo” costuma dar lugar ao “que”, espécie de relativo universal: em vez de “Aquela moça, cujo pai é senador...”, por exemplo, emprega-se “Aquela moça, que o pai é senador...”. Também ocorre o emprego do “que” e de um possessivo, posto adiante: em vez de “Aquela moça, com cujo irmão você estuda...” emprega-se “Aquela moça, que você estuda com o irmão dela...”.
Diz o professor Evanildo Bechara que, “embora a língua padrão recomende o correto emprego dos relativos, o relativo universal se torna, no falar despreocupado, um elemento linguístico extremamente prático” (a expressão em itálico é de Kristofer Nyrop, citado por Bechara). Pelo que se vê das questões de vestibulares como o da Fuvest e da Unicamp, o conhecimento do emprego do relativo “cujo”, em se tratando da língua culta, está longe de ser ave migratória.
Por fim, convém notar que, em textos jornalísticos, são cada vez mais comuns construções como esta: “Prevista para ser inaugurada em dezembro, a nova pista da Imigrantes reduzirá...”. O que se diria: “A nova pista da Imigrantes está prevista para ser inaugurada em dezembro” ou simplesmente “A inauguração da nova pista da Imigrantes está prevista para dezembro”? Parece claro que se optaria pela segunda, o que equivale a dizer que a construção “Prevista para ser inaugurada em dezembro, a nova pista...” deve ser substituída por “Está prevista para dezembro a inauguração da nova pista da Imigrantes, que reduzirá...” ou por “A nova pista da Imigrantes, cuja inauguração está prevista para dezembro, reduzirá...”. Como se vê, em alguns casos não faltam bons caminhos para os que quiserem fugir do (moribundo?) “cujo”.
Até a próxima. Um forte abraço.