Entre Vistas (Postado em 06/06/11)

 Entre Vistas


Estamos inaugurando mais um espaço para os leitores do Letras. No Entre Vistas você terá a oportunidade de conhecer personalidades do panorama literário, científico e acadêmico num bate-papo descontraído e informativo. Em nossa estreia, temos um convidado especial: Braulio Tavares, escritor, roteirista e compositor. Parceiro de Lenine, Ivan Santos e Lula Queiroga, tem cerca de 60 composições gravadas por vários artistas da MPB, entre eles MPB4, Elba Ramalho, Maria Rita, Skank e internacionais como a cantora norte-americana Dionne Warwick.

BRAULIO TAVARES - Poeta, escritor e compositor, estudou na Escola Superior de Cinema da Universidade Católica de Minas Gerais, é pesquisador de literatura fantástica, compilou a primeira bibliografia do gênero na literatura brasileira, o Fantastic, Fantasy and Science Fiction Literature Catalog (Fundação Biblioteca Nacional, Rio, 1992), é colunista do Jornal da Paraíba e escreve roteiro para shows, cinema e televisão. É romancista premiado em Portugal com o Prêmio Editorial Caminho de Ficção Científica, em 1989.

O que motivou o senhor a se tornar escritor e como foi o início?

Nasci numa família (pelo lado paterno) de jornalistas e poetas, como eram meu avô, meu pai e meus tios. Escrever era algo que se aprendia desde a infância como algo natural, como brincar ou jogar bola. Não havia a expectativa nem a cobrança de ser escritor. Na verdade, meu pai esperava que eu me tornasse jornalista ou advogado, mas sempre me encorajou a escrever poesia (ele era mais ligado em poesia do que em prosa). Escrevi desde cedo, mas comecei a publicar relativamente tarde. Meu primeiro livro publicado foi um folheto de cordel, escrito em 1975 e publicado em 1979, "A Pedra do Meio Dia, ou Artur e Isadora". Foi reeditado como livro infantil em 1998 (pela Editora 34, de São Paulo) e é hoje o meu livro mais vendido.

Que escritor o senhor considera que teve maior influência na formação de seu estilo?

Sinceramente eu não creio que tenho um estilo literário definido, porque as influências são variadas, e em cada conto que escrevo procuro um tom meio diferente, uma mescla de vários estilos. Por outro lado, não acho que influência diga muita coisa boa. Tem escritor jovem que diz: "Sou influenciado por Machado de Assis, Kafka, Joyce, Balzac, José Saramago..." E daí? O que quer dizer isto? Que ele tenta escrever igual a eles? Que adota os mesmos temas usados por eles? As influências são o lado negativo da nossa obra, estão na coluna do "Débito" e não na do "Crédito". O que temos de perguntar a um escritor é: "Existe algo que você considere uma contribuição tipicamente sua para a literatura?". No meu caso, a resposta seria "não". Costumo caminhar por caminhos já percorridos, mesmo que por pouca gente.

Como foi receber o Prêmio Editorial Caminho de Ficção Científica, em 1989, concedido pela editora de José Saramago?

É o prêmio que mais me orgulho de ter recebido, inclusive porque foi conferido ao meu melhor livro, aquele que eu escolheria para preservar se todo o resto tivesse de ser destruído. Ele me proporcionou aos 39 anos minha primeira viagem para fora do Brasil, e foi em grande medida um triunfo coletivo da minha geração de escritores, porque, sem o Clube de Leitores de Ficção Científica (CLFC) e o seu fanzine, o "Somnium", meu livro não teria sido escrito.

Como o senhor vê o panorama da literatura brasileira de ficção científica hoje em dia?

Existe uma atividade editorial muito intensa, centralizada em São Paulo, com muitas pequenas editoras produzindo livros de excelente qualidade gráfica, e aos poucos encontrando canais de distribuição, resposta na imprensa, etc. Esse movimento é impulsionado pelo movimento dos fãs de FC, que já apresenta faixas de gerações sucessivas – o pessoal na faixa dos 50-60 anos, como é o meu caso, o pessoal na faixa dos 35-40 e mais uma porção de jovens que estão estreando. Vejo isso com muita alegria e otimismo; se existisse um ambiente editorial como este 20 anos atrás, eu teria me tornado um escritor de ficção científica. A crítica que faço (repetidamente) a esse movimento é que o pessoal é meio descuidado com o estilo, pensa só na história que está contando. Como leem apenas livros em inglês e livros (mal) traduzidos, muitos deles têm dificuldade em escrever uma prosa que vá além do "fanfic".

Em seu artigo A solução que caiu do céu (Revista Língua), o senhor falou um pouco do clichê deus ex machina e de como esse recurso torna os finais das narrativas decepcionantes para os leitores. Buscamos orientar nossos alunos a evitá-lo em suas redações. Isso porque não se valoriza o trabalho de intrincamento entre os elementos constantes na trama, o que permite que o redator conte qualquer história, por mais absurda que pareça, para no final informar ao leitor que tudo não passava de um simples sonho. Perguntamos: esse recurso, despertar de um sonho, enquadra-se nesse mesmo caso de deus ex machina?

Eu tenho essa mesma impaciência quanto às histórias que no fim dizem ter sido tudo um sonho, um delírio, uma fantasia... E não são apenas redações de estudantes – muitos grandes contos da literatura seriam melhores ainda sem esse recurso. Não acho que se aplique a eles o termo "deus ex machina", porque me parece que neste caso específico se alude a uma interferência externa de alguém que vem salvar o herói de um perigo ou esclarecer uma situação confusa. É o "deus que desce do céu com a ajuda de máquinas", algo que não fazia parte da história até então, não fazia parte da equação literária e vem apenas para salvar, na verdade, mais o autor do que o personagem.
O "Foi Tudo Um Sonho" é irmão de sangue desse recurso, talvez não seja exatamente a mesma coisa.

O emprego desse recurso no cinema, na televisão e na literatura tem um contexto bem diferente do de uma redação produzida para avaliação seletiva. Há até exemplos interessantes na literatura brasileira, e um deles é o de Aluísio Azevedo, em seu livro de contos chamado Demônios. Nesse livro, o primeiro conto, também intitulado Demônios, se vale de uma solução quase parecida. O narrador revela que toda sua narração era apenas o que ele escrevera numa noite de insônia.

O conto "Demônios" foi incluído por mim na antologia "Páginas de Sombra - Contos fantásticos brasileiros", que organizei em 2003 para a Casa da Palavra. É um grande conto, e seu maior defeito é justamente esse final esvaziador. Meu conselho aos autores é que procurem imaginar um final surpreendente, original, e que depois comecem a contar a história tendo esse final em vista, sabendo aonde querem chegar, mas sem dar muitas pistas ao leitor, para que seja uma surpresa, sim, mas não uma surpresa que é uma mera negação do que foi contado antes. Escritores jovens ou principiantes também tendem a usar esse recurso do sonho porque é o estado mental mais parecido, na experiência de vida deles, ao ato criativo-imaginativo-literário em que estão mergulhados ao escrever.

Em um de nossos contatos, o senhor utilizou a expressão "final onírico". Este é o termo pelo qual os autores se referem a esse artifício ou é uma criação sua?

Chamei de finais oníricos por falta de outra coisa. Não acho que exista um termo específico para isto. Um termo frequente, mas mais amplo, é "final surpresa" (ou "surprise ending" em inglês), aquele final que passa uma rasteira no leitor. O final "era tudo um sonho..." muitas vezes entra nessa categoria, mas nem sempre.

Brasileiro gosta de ler?

Essa pergunta é muito ampla; há 190 milhões de brasileiros e nem todos podem / conseguem / sabem / gostam de ler. Mas o crescimento do poder aquisitivo que inflou a Classe C (dizem que ela hoje corresponde a 51% da população) vai ampliar a base de leitores do Brasil. Talvez estejamos criando as condições para que em breve haja aqui um fenômeno de literatura de massa parecido com o da pulp fiction norte-americana dos anos 1930-50, só que agora conjugado a fatores imprevisíveis como o livro eletrônico e a revista multimídia. Seria bom que isto ajudasse o surgimento de gêneros literários brasileiros, consolidados, gêneros pouco ou não conhecidos em outros mercados. Já pensou, um florescimento de um "corpus" de romances afro-brasileiros, de uma poesia indígena urbana, de épicos de cangaço, de cordel-pop dos morros e periferias? E sem dúvida haverá um espaço para uma FC brasileira, um terror brasileiro, um policial brasileiro, etc.