Tema
Crie
uma narrativa em que duas personagens de países, costumes e
classes sociais diferentes se envolvam e esse envolvimento deixe
uma lição de vida.
O
feiticeiro
Marcelo
F. de Menezes
Ao
me formar sociólogo, eu, muito jovem ainda, percebi que me faltava
experiência de campo. Um professor, amigo e mentor me aconselhou
insistentemente a tomar um banho de imersão em uma cultura
totalmente diversa daquela a que eu estava acostumado, a fim de ampliar
meus horizontes e me livrar de preconceitos, muitos dos quais eu
sequer conseguiria suspeitar à época. Contrariando meus pais, que
chegaram a cortar minha gorda mesada, indignados que estavam com
minha decisão, abandonei o conforto de uma vida de classe média
alta e fui viver na Namíbia, país que ainda conserva algumas tradições exóticas.
Junto
à língua oficial, o inglês, dezenas de dialetos são utilizados
pelos habitantes, o que torna a compreensão uma tarefa quase
impossível. Contudo, com auxílio de um guia e intérprete, consegui
moradia numa espécie de pensão rústica para moços e, no mesmo
bairro, emprego num insalubre matadouro de porcos. Eu era o
responsável pelo abate de dezenas de suínos diariamente, algo
inteiramente novo e perturbador para mim, que jamais matara sequer
uma mosca, por assim dizer. Somente um coração muito duro não se
comove ante a cena de um animal lutando contra seu fim. Era um
trabalho penoso, mas eu tinha de sobreviver... Meu amor pela carreira
e pela pesquisa me fazia superar qualquer situação difícil.
Enquanto
me ocupava com meu doloroso trabalho no terreirão do abatedouro, do
terceiro andar de um prédio decadente, que servia de abrigo a
famílias pobres, um senhor negro, bastante idoso, ficava a me
observar com dureza no olhar. Enfezado, ele gritava palavras em seu
confuso dialeto e parecia me amaldiçoar a cada porco degolado. Suas
mãos traçavam desenhos misteriosos no ar e, enquanto cantava uma
melodia triste e bem ritmada, de sua janela, ele apontava um chocalho
de cabaça para mim, soltando densas baforadas de seu charuto.
Um
dia, ao chegar do trabalho, a dona da pensão levou a meu quarto um
vistoso colar, feito de sementes nativas. Disse que era um presente
do ancião enfurecido do terceiro andar. Eu, muito católico que era,
disse que não iria usar aquilo; de certo era um fetiche para me
fazer mal. Mas, um pouco contrariado, acabei por ficar com o tal colar, saindo
imediatamente para ter com meu guia, no intuito de me certificar
sobre aquilo. Ele sugeriu que fôssemos juntos ao matadouro no dia
seguinte a fim de presenciar o que realmente estava acontecendo.
Assim
o fiz. E, mais uma vez, a cena se repetiu. Ao sangrar o primeiro
porco, o feiticeiro começou a praguejar do alto de sua janela,
gesticulando muito e cantando a mesma melodia. Após ouvir tudo, o
guia me explicou o significado das misteriosas palavras.
―
Não
é uma maldição não! ― disse-me rindo. É uma bênção! E é para sua proteção, viu? Ele está
afastando de você os espíritos vingativos dos porcos; eles sim
estão aborrecidos com você, pois sua piedade está lhes
dificultando a morte!
Aceitei
finalmente o presente. Diante do alerta de meu protetor anônimo,
mudei de emprego e continuei minhas pesquisas. Depois de voltar para
o Brasil e de relatar minhas peripécias por África ―
e, em especial, essa aventura ―,
meu professor e amigo me esclareceu algo mais óbvio ainda:
― Viu?
Até para entender nossos próprios costumes é vital o contato com o
outro, com outra cultura. De onde você acha que vem a expressão
espírito de porco? Os negros africanos, durante o período da escravidão, a trouxeram para cá!
Hoje,
todas as vezes em que inicio meu concorrido curso de sociologia,
exibo, orgulhoso, o colar, que jamais saiu do meu pescoço, contando a
meus alunos como ele entrou na minha vida.